O ato de narrar marca um ponto importante no desenvolvimento da criança, já que esta estabelece uma nova relação com a linguagem. É um momento em que a criança passa a não depender mais da interpretação/enunciado do adulto, em que a progressão do seu próprio discurso já a possibilita interpretar e lançar o seu próprio enunciado.

A aquisição da narrativa é um terreno maravilhoso para desvendar as mudanças da criança com a linguagem, através das posições discursivas: o narrador e o personagem mais precisamente.

Tudo inicia pela fase das protonarrativas:

Dos 2 anos aos 3 anos – nessa fase o discurso é o do AQUI/AGORA. A criança ainda não é capaz de sozinha construir enunciados que possam caracterizar uma narrativa. Elas dispõem nesse momento da capacidade de comentar o que está ocorrendo durante a interação, ou falar da programação de ações que ela pretende realizar em seguida. Um exemplo dessa narrativa é: “Fecho a porta e prendo a mamãe!”, “A bebê vai dormir. Depois vai comer.” (descrições), ou ainda “Eu vou buscar meu peixão pra nadar.” “Esse pão é pra você comer.” (comentário).
Nessa fase já aparece às expressões que demonstram relações temporais: já, pronto, outra vez, ainda e o agora. Assim como aparecem as perguntas do tipo: Quando?, Em que dia?, Que horas?

Próximo dos 3 anos – aparecem as expressões temporais: depois, ontem, amanhã, de noite, que se referem a momentos não contemporâneos ao da enunciação. A expressão antes vem meses após o uso do depois
Nessa fase ela ainda não consegue combinar duas ou mais sentenças, ou dois ou mais eventos. As experiências compartilhadas são relatos pessoais.

Aos 3 anos – surgem as Histórias Imaginárias: esse tipo de narrativa surge principalmente das brincadeiras entre o adulto e a criança. Nessa interação a criança aos poucos vai ocupando o lugar narrativo e o adulto passa a ser interlocutor. A atuação do adulto consiste em dirigir à criança perguntas que ao serem respondidas favorecem o surgimento da narrativa. Essas perguntas podem ter o seguinte contexto:

– expressões que incidem sobre a localização espacial de um evento: “Aonde você foi com a mamãe?”, “Onde o George estava com o papai Pig?”

– aquelas que incidem sobre personagens: “Quem é o irmão da Peppa?”

– aquelas que incidem sobre uma ação: “Você ganhou um violão?”, “Você foi a escola hoje?”, “O que você fez no shopping?”

O objetivo dessas perguntas é desencadear lembranças. Os enunciados da criança são pequenos e podem ser vistos como embriões da narrativa propriamente dita.

Sobre a narrativa propriamente dita:

Dos 3 aos 5 anos de idade – depois dos 3 anos surge a necessidade de caracterizar tipos diferentes de narrativas. Surgem as histórias, relatos e casos.

1) Histórias: esse termo tem  se refere às narrativas típicas da nossa cultura, narrativas com ordenação temporal/causal invariável, de conteúdo  e enredo fixo, tais como: Chapeuzinho Vermelho, Branca de Neve, Os Três Porquinhos, entre outras. Esse tipo de narrativa é importante na construção do discurso narrativo da criança, pois apresenta a mesma a macro estrutura do discurso. Pode aparecer entre 3 e 4 anos de idade. O papel do adulto enquanto estruturador ainda é fundamental nessa fase. As marcas linguísticas que mais aparecem são na fala da criança: “Era uma vez….”, “Daí……”, “Acabou a história…..”.

2) Relatos: esse tipo de narrativa acontece para recuperar algum tipo de experiência vivenciada pelo narrador. Não há o compromisso com um enredo fixo, mas sim com uma suposta verdade. Nessas experiências estão os passeios, viagens, eventos vividos pela criança com sua família.

3) Casos: casos são a forma mais livres de narrativa. Não há compromisso com enredo fixo e nem com uma verdade. No caso, o narrador pode organizar eventos/ações de diversas naturezas, em uma sequência temporal não determinada previamente. Há a possibilidade de o narrador estar presente ou não como personagem na história. Pode-se criar uma realidade fictícia dependendo da imaginação da criança. É uma mistura de realidade e ficção.

Então como os pais podem auxiliar nesse desenvolvimento? Contando histórias para seus filhos na hora do descanso é um bom começo. Fale o nome dos personagens, diga o que estão fazendo e depois retome com a criança os principais fatos, da seguinte forma: 

“Você lembra quem estava na história?”

“Qual era mesmo o nome da história?”

“O que o ….. estava fazendo?”

Vale também narrar para criança um passeio feito, relembrando a ela os principais momentos. Questioná-la sobre o que fez na escola, mesmo que ela tenha dificuldade em iniciar uma resposta é importante. 

O adulto que está com a criança pode dar-lhes possibilidade de resposta como:

“Hoje na escola você fez atividade com massinha ou colagem?”

“Você brincou com o João ou o com Mateus no parque?”

“Você foi ao parque e brincou de balanço ou no escorregador?”

Após os 4 anos – a criança passa a tomar cada vez mais a iniciativa de relatar eventos e ações do passado, o que contribui muito para sua constituição como narrador e na transformação dos papéis de locutor e interlocutor. E próximo dos 5 anos a criança realmente é mais ativa na elaboração do discurso, pois já tem o domínio da técnica do discurso. Quanto mais a criança se apropria da linguagem mais ela também se desenvolve na narratividade. E quanto mais conteúdo e informação de mundo ela possui, mais criativa é sua narração.

Por isso pais, professores e cuidadores apresentem o mundo para as crianças, vamos ler para elas, vamos fazê-las participarem de fato das experiências vividas na família e na escola. Assim poderemos, em parte, garantir sua imersão pelo mundo da narrativa.

Fabiane Klann Baptistoti Sá – Fonoaudióloga clínica e Mestre em Linguística

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